A humanidade se desenvolveu em torno do seu trabalho. Sem entrarmos em questões ideológicas, e de forma generalista, havendo demanda, quem produzia mais, ganhava mais. Então, desde a era da Revolução Agrícola (há 10 mil anos), um produtor que plantasse batatas, quanto mais mercado tivesse, mais poderia ser remunerado pelo seu trabalho, seja pelo escambo ou, depois, financeiramente, com a invenção do dinheiro. Na Revolução Industrial (há menos de 250 anos), a lógica se manteve, seja nas linhas de produção de insumos e mercadorias e, até mesmo, com o trabalho intelectual. Sempre foi assim: se houvesse muitas pessoas desejando o conteúdo produzido por um veículo jornalístico, se a forma de apresentá-lo agradasse, teria mais audiência, venderia mais jornais. O trabalho era valorizado de acordo com o interesse dos consumidores naquilo que estava sendo ofertado.
A Era da Informação chegou há 75 anos, mas há 20, começou a democratizar a distribuição da informação, tirando poder dos grandes veículos e valorizando cada pessoa. Mesmo assim, por muito tempo, ainda funcionou dentro dessa linha de pensamento: quem mais era consumido, mas rentabilização tinha com anúncios.
E surgiu o Google, em 1998, com o propósito de organizar toda a informação do mundo. Louvável, pesamos. Que baita propósito! Só que com ele, paulatinamente, o SEO começou a ser mais exigente e doentio. Search Engine Otimization, é o nome dado ao trabalho de se organizar o conteúdo de uma página de internet, para que ela tenha maior probabilidade de ser encontrada e aparecer antes no rankeamento dos resultados dos mecanismos de busca. Ou seja, do Google, que domina cerca de 90% do mercado. Então, uma série de providências precisaram ser tomadas por aqueles que desejem lutar pelos cliques e manter seu negócio de pé. Repetições de palavra-chaves no texto, tamanho de parágrafo, tamanho do texto, hierarquização de subtítulos, correlação do conteúdo com o domínio e o site em que está hospedado, e mais uma centenas de exigências promovem a eliminação de qualquer traço de humanidade e criatividade daquele conteúdo. O texto geral da internet virou a pior forma de formar adultos pela leitura. Algo totalmente avesso ao livro. O algoritmo que, acredito, foi criado com a intenção de entregar os artigos que mais interessam aos usuários, acabou nivelando por baixo os bons de fato com aqueles que são bons apenas em SEO.
E foi aí que o Google deu mais um passo. Começou a resumir os trechos dos artigos relacionados com a busca feita. Você consegue até mesmo o resultado do jogo de futebol que está sendo disputado neste momento, exposto diretamente no Google. Ou seja, você não precisa mais clicar no resultado de sua pesquisa. Os sites não conseguem mais ser remunerados por seu trabalho jornalístico. Quem vai estudar e produzir conteúdo de qualidade, com ética e responsabilidade se não consegue nem mais ser remunerado por isso?
Mas aí o Google foi além, e com o advento da Inteligência artificial (de 5 anos pra cá), inventou o Gemini, um jeito ainda mais atroz do que reproduzir parte do conteúdo de um site: agora o resultado vem de um mix de diversos sites. Um texto apócrifo, que rouba descaradamente o trabalho de alguém. O mesmo acontece com as ferramentas generativas de criação de imagens.
Quem, em sã consciência, vai investir seus estudos e carreira em produzir material de qualidade? Quem será fonte para que o Gemini faça um meshup e entregue sua resposta? E se não houver gente criando, a inteligência artificial vai se basear no quê e em quem para prover suas entregas? Sabemos que a IA não é capaz de criar nada. Ela precisa de subsídios prévios para gerar. Seja uma imagem, que carece de um banco enorme que sirva como referência, seja um texto, que precisa de fontes criadas por alguém.
Se ninguém for remunerado para produzir conteúdo de qualidade, quem criará as bases para o funcionamento da IA? Ela começará a se basear em materiais que ela mesma criou? Seria como a reprodução genética de uma anomalia. Algo que é a reprodução da reprodução da reprodução de algo que foi mal formado em sua gênese.
Os períodos entre os marcos de desenvolvimento da humanidade se tornam cada vez mais curtos, em aceleração exponencial. Sem tempo para que a gente consiga compreendê-los totalmente e avaliar as implicações que terão em nossa existência como sociedade. A verdade, é que inventamos coisas que não sabemos ao certo o que elas fazem. Vamos descobrindo com o uso.