Escrito pelo nosso sócio e fundador da Incomum, o Cuca (Daniel Moreira).
Depois de quase um ano rodando o mundo em época de pandemia, a nova rede social ClubHouse cai nas graças dos brasileiros.
É curiosa a evolução da internet. Na década de 1990, a rede surgiu procurando a funcção da mídia impressa. O conteúdo escrito era o dominante: artigos, blogs, fóruns e notícias. Na ordem natural das coisas, era esperado que após viesse o conteúdo de áudio, assim como foi com o rádio. Mas não havia adesão suficiente na rede para que se entendesse o jargão “conteúdo é rei”, e a versão radiofônica da internet se restringiu à pirataria e troca de mp3 de música.
Mais tarde, os adolescentes começaram a produzir conteúdos em vídeo em seus quartos (o que, de alguma forma, persiste até hoje) com o chamado lifecasting proposto pela Justin TV em 2007. O Youtube se popularizou em seguida, mas somente há poucos anos passou a permitir transmissões ao vivo. Ou seja, o ao-vivo em vídeo, como conteúdo independente, veio antes do em áudio na internet. Afinal, por que privar as pessoas das imagens quando a tecnologia já as permitia?
Como uma mistura de rádio com seminário de palestras e debates, o ClubHouse está há uma semana causando frisson no Brasil. Chegou comendo pelas beiradas, primeiramente, entre o público linkediniano. Os assuntos mais discutidos são marketing, negócios, empreendedorismo e investimentos. Mas há também espaço para viagens, autodesenvolvimento, humor, música e, até mesmo, conversas sobre a própria plataforma.
Só tem para iOS?
Por enquanto, o ClubHouse está disponível apenas para iPhone. Alguns dizem que isso é algo antidemocrático. Concordaria, se a iniciativa fosse pública. E se reparar bem, se encontra muito mais aplicativos para Android que não existem para iOS do que ao contrário. Ou seja, não precisamos problematizar essa questão. Mas ainda há alguns outros bons motivos para essa restrição inicial. É parecido com o que aconteceu com o Instagram. Quem lembra?
O hype
A Apple traz consigo esse poder. Promotores ou detratores da marca da maçã mordida não irão discordar: ela tem o poder de deixar as coisas mais cool. Deu tão certo com o Instagram que o Facebook não só o comprou como o incorporou dentro da sua mesma base comercial. O ClubHouse bebe um pouco dessa estratégia: quer ser descolado antes para se popularizar depois.
A qualidade técnica
Como o próprio nome diz, o Instagram se propunha apenas ao compartilhamento de fotos instantâneas. No começo, nem subir imagens do rolo da câmera podia. A imagem tinha que ser feita na hora com a câmera do iPhone. É como acontece com o ClubHouse: os áudios são ao vivo, capturados com o microfone do dispositivo. Para prover uma experiência visual melhor, o Instagram confiava mais nas câmeras dos celulares da Apple (elas sempre foram melhores do que a média das que outros smartphones ofereciam). Assim faz o ClubHouse: confia mais na qualidade de captação de áudio dos iPhones. As conversas da plataforma parecem estar sendo geradas em um estúdio de gravação — claro, quando alguém não está usando um fone/microfone qualquer para tal. Assim, reduz-se a primeira e importante barreira para a aceitação de um novo produto — a estética — e o ClubHouse vai ganhando uma base de aceitação robusta para expandir com mais solidez no futuro. Quem aguentaria dois minutos em uma sala de conversa com o áudio ruim?
Base menor
Como uma rede feita para transmissão de áudio, há de se convir que um sucesso repentino com potencial mundial traria problemas técnicos e financeiros para um aplicativo ainda jovem. Quanta coisa poderia dar errado e frustrar os usuários, destruindo toda a reputação e qualquer perspectiva de futuro da companhia? Crescer a passos lentos e controlados, com um MVP eficiente, é, sem dúvida, uma decisão responsável. O iOS detém apenas 27% do mercado do mundo e 14% do brasileiro. É um bom e fértil campo de testes para uma evolução consistente.
Como funciona o ClubHouse?
É baseado no mesmo sistema que você já conhece de seguir pessoas. A partir disso, da escolha de interesses e de seguir clubs (como se fossem canais), você recebe sugestões de salas em andamento ou agendadas. Você pode adicionar as programadas em sua agenda online para se lembrar.
Quando você entra em uma sala, vê na parte de cima os moderadores e speakers convidados, logo abaixo os amigos dos speakers e mais abaixo os demais que estão na audiência. É como se fossem palco, área VIP e plateia. Tirando o fato que só os primeiros podem abrir microfone, as outras duas divisões são apenas uma organização que pode ajudar a encontrar gente nova e interessante para seguir, além de dar maior respaldo ao evento que está acontecendo.
Qualquer um, seja onde estiver, pode levantar a mão para solicitar a fala. Cabe aos moderadores aprovarem. Quando isso acontece, você sobe para o bloco de cima e, se ninguém te mandar embora (o que nunca vi acontecer) você fica lá.
Quando alguém está com a palavra, um círculo bege aparece pulsando em volta do seu avatar, destacando-o dos demais. Ao clicar nele você tem acesso a sua bio. Você também pode denunciar um speaker que se comportou de maneira inapropriada, desrespeitando os termos de uso da plataforma.
Como o ClubHouse é uma rede com popularidade recente no Brasil, a quantidade de salas ainda é pequena. Por outro lado, está atraindo muitos expoentes de diversos segmentos profissionais. Isso faz com que você tenha uma oportunidade única de conversar com alguém que admira, promovendo um ambiente de troca muito bacana.
Todas as salas têm um tema bem específico e as discussões que frequentei sempre foram bastante organizadas e de alto nível. As pessoas não se interrompem, escutam umas às outras e se respeitam. É uma benção não haver possibilidade de chat nem de gravação do conteúdo, pois se torna uma rede sem anonimato e sem mimimi. Se você quiser contestar algo que foi dito, levante a mão, peça a voz e se exponha de fato. Isso reduz muito as falas não pensadas, desrespeitosas e as chances de polêmicas gratuitas e intempestivas.
Rosana Hermann, Tatá Werneck, Martha Gabriel, entre tantos outros, foram presenças constantes nas salas oferecidas para mim. Entrei em uma de marketing com CMOs das maiores empresas do Brasil, como McDonalds e Coca-cola. Estive em uma outra com nomes do rock nacional junto com empresários do Sepultura e Jota Quest falando sobre perrengues em turnês, e em outra sobre masterização de áudio, com grandes engenheiros de som brasileiros que trabalham pelo mundo. Nessa, pedi a fala para fazer um comentário e fui elevado à condição de speaker.
Como faço para entrar no ClubHouse?
A velha estratégia dos convites, inaugurada no Orkut, é a chance que você tem de um amigo lhe convidar. Isso cria uma aura de desejo de fazer parte do ClubHouse. Mas não é só assim que você pode ingressar. É possível também se cadastrar e esperar que outro usuário aprove seu ingresso. Sua solicitação será notificada àqueles que têm seu telefone na agenda e concederam à plataforma acesso a ela. Cada vez que alguém entra por esse processo, quem autorizou ganha um crédito para enviar convite para mais alguém.
ClubHouse veio para ficar?
Você não acha realmente que vou cair na armadilha de predizer isso? Mas acredito que a efemeridade do ClubHouse vai depender da consistência, relevância dos assuntos propostos nas salas e da capacidade da plataforma de prover mecanismos de filtragem das pautas a cada um de nós. No momento em que o produto oferecido fizer mais mal do que bem e estar ali acabar sendo mais penoso do que prazeroso, a porta de saída estará aberta.
Temos visto que as redes sociais de sucesso, para não morrerem, acabam se adaptando ao mercado, perdendo o propósito inicial a que foram criadas e afugentando os pioneiros que apostaram nela em seu lançamento. Se isso acontecer, não se preocupe, vai sempre ter uma iniciativa paralela que atenda mais os seus desejos. O rádio não está na ativa desde o século IXX? Quem não curtir, que troque de estação.